sábado, 2 de outubro de 2010

CULTURA E CIDADANIA

CULTURA E CIDADANIA

Dentre as significações referidas nos dicionários para a palavra “cidadão”, o primeiro é sempre o de “habitante da cidade”, certamente porque é esta a condição que está na origem do que se entende pelo termo. Da mesma maneira, “vilão” é originariamente o habitante da vila, pequenos agrupamentos humanos que nasciam à sombra dos castelos medievais. Mas quando nos voltamos para a história da palavra “cidadão” e consideramos seu emprego nos contextos das civilizações grega e romana, deparamo-nos imediatamente com um significado que vai além da situação física e geográfica: uma acepção política, na verdade ético-política, que denota um tipo de vínculo entre o indivíduo e a cidade completamente diferente da habitação de um lugar no sentido imediato.

É interessante notar que o vocábulo “cidade” também sofreu transformações: deixou de significar apenas um lugar fisicamente delimitado onde as pessoas vivem juntas e passou a ser entendido como “comunidade”, isto é, como vida política que se dá a partir de uma certa experiência de exercício de poder socialmente organizada. E atualmente, quando nos referimos a “cidadão”, pensamos sempre nos momentos exemplares em que o conteúdo político do significado da palavra teria sido vivido intensamente: a democracia grega, a Roma republicana, a revolução francesa. Ou seja, pensamos naquilo que pode definir um indivíduo na medida em que ele se entende como sujeito de direitos que compartilha com os demais na comunidade política.

Cidadão e comunidade não se definem, portanto, por parâmetros de território, até mesmo porque os limites da cidade podem ser tanto diminuídos ou ampliados em relação aos limites da cidade como território. O indivíduo pode não ser cidadão na cidade que habita, como acontecia com a maioria dos habitantes da cidade grega; e ele pode tornar-se um “cidadão do mundo”, se entender que a sua experiência histórica pode ou deve ocorrer em dimensões mais amplas do que a cidade ou país. Isso significa que há outros vínculos que constituem a cidadania e a comunidade, que podem ser entendidos como laços éticos, históricos, políticos que se tornam progressivamente mais fortes à medida que se vão consolidando. Tudo isso se expressa em várias ordens de representação, que vão desde os costumes no nível da cidadania até as manifestações artísticas singulares. Trata-se de um ethos: uma experiência peculiar de habitar o mundo, à qual chamamos cultura.

Nas sociedades coesas existe uma relação orgânica entre o indivíduo e a cultura, de modo que ninguém precisa ser introduzido na vida cultural ou nela “incluído” porque a cultura é vivida comunitariamente. Nas sociedades modernas, marcadas pela desigualdade, isto é, pela relação dominante/dominado, a cultura é apropriada pela classe dominante, que tenta segregá-la ou fazer dela instrumento de dominação. A desigualdade social manifesta-se então na divisão entre cultura erudita e cultura popular, a primeira utilizada como aparato de diferenciação de uma elite e a outra definida como manifestação espontânea e inferior. Daí o sentido consolidado de cultura como sinônimo de uma posição intelectualmente elevada, em geral ocupada por aqueles de posição também economicamente superior.

Essa segregação das “duas culturas” naturalmente é sintoma de uma sociedade desagregada e pautada pela injustiça como critério geral das relações sociais. Uma sociedade, portanto, eticamente “desorganizada”, em que a cidadania passa a ter um significado abstrato e instrumental. Abstrato porque não é vivido comunitariamente; e instrumental porque é utilizado como cooptação nos momentos em que as democracias formais necessitam do comparecimento dos “cidadãos” às urnas para legitimar o mecanismo de reprodução do poder.

Uma experiência real de cidadania só pode acontecer no âmbito de uma comunidade real, aquela que faz uma experiência efetiva de si mesma e da sua cultura, e em que todos os cidadãos tenham a oportunidade de se reconhecerem como participantes ativos da vida cultural, entendida como um processo de afirmação e emancipação dos indivíduos e da comunidade. Nesse sentido e principalmente em nosso país, cidadania cultural é um projeto cuja realização se situa no horizonte de uma luta a ser travada em vários níveis e por diferentes tipos de movimentos sociais que têm em comum a contestação da segregação, da desigualdade e da injustiça.

Os laços criados nesse tipo de militância fortalecem a expectativas de uma experiência cultural alicerçada nos critérios de cidadania e comunidade, porque a cultura viva se alimenta de relações dinâmicas que se dão entre essas duas instâncias. Nesse sentido, a inclusão social, desde que não seja patrocinada pelas elites mas que revele as autênticas aspirações das comunidades, deve ser considerada uma das mais legítimas reivindicações de resgate histórico e de justiça social.

http://www.proesq.institucional.ws/psicoeducacao/tabid/192/default.aspx

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